segunda-feira, 9 de abril de 2012

Direito e a tradução da realidade

A incidência da norma jurídica, efetivada pelos operadores do direito, consiste na tradução do fato social em fato jurídico, segundo a técnica própria da linguagem do direito positivo.
O fato social já é uma tradução do evento do mundo real, da realidade, em linguagem própria do tradutor, fruto da sua vivência cultural numa língua natural que tem suas próprias estruturas de representação da realidade.
Portanto, o fato jurídico, aquele que interessa ao ordenamento, é consequência de duas traduções linguísticas. A realidade em si, fugaz e múltipla, somente em alguns aspectos pode ser captada ou traduzida pela linguagem natural que a representa. O fato social, portanto, já traz em si as restrições da primeira tradução, da primeira versão representada nos signos da linguagem.
Cabe aos operadores do direito verter o fato social, realidade descrita em linguagem social, para o mundo jurídico, fazendo a segunda tradução, do fato social para fato jurídico, que é a representação do evento do mundo real na linguagem jurídica. Linguagem jurídica que é essencialmente prescritiva, onde são estabelecidas as relações jurídicas, interligando os sujeitos em suas interações intersubjetivas.
O próprio direito positivo traz em sua constituição os meios e formas com os quais os operadores do direito poderão se valer para constituir o fato jurídico. Trata-se da linguagem das provas, que determinarão o que é o fato jurídico para o mundo do direito. O grande desafio do jurista é saber distinguir o que é evento, fato social e fato jurídico. As relações entre tais categorias estão estabelecidas nos processos de tradução da realidade, do mundo bruto em si (evento), traduzido em linguagem na consciência de cada um (fato social), e que poderá entrar no mundo do dever-ser, do direito, conforme sua adequação à linguagem probatória que o transmude em fato jurídico.
A conclusão a que chegamos ao estudar este ponto é de que a linguagem firma-se como ponto fundamental para o entendimento da realidade. A linguagem cria a realidade para a nossa consciência. Sem podermos nos expressar numa língua sobre os objetos e dados brutos com os quais interagimos no mundo, não conseguiríamos transmitir nosso conhecimento a outra pessoa, não poderíamos nos comunicar, não adquiriríamos nosso próprio conhecimento do mundo.
Além disso, existem várias camadas de linguagem para expressar um evento, ou se formos mais precisos e acurados, existe uma linguagem para cada tradução que fizermos do evento. Tal pode ser entendido a partir da língua natural do meio em que vivemos, como também pode ser traduzido, a partir dessa primeira tradução, para outra espécie de linguagem, científica por exemplo, onde se conformará segundo as regras linguísticas estabelecidas neste novo padrão. Assim ocorre com o evento do mundo real, que traduzimos para nossa língua materna, em nossos conscientes, que forma o fato social visto sob o ângulo cultural em que fomos educados. Tal fato social poderá ingressar no mundo científico do direito, por exemplo, obedecendo aos cânones da linguagem jurídica posta pelo direito positivo. E aí teremos o fato jurídico, vertido a partir do fato social.
Perceba que nesses processos de traduções, de passagem de uma linguagem para outra, o evento bruto do mundo real, fugaz e instantâneo, já terá perdido várias de suas características intrínsecas e será moldado a partir do ponto de vista do operador que efetuar as traduções. Daí que, no direito, um mesmo evento poderá suscitar diversas traduções, vale dizer, várias interpretações. Tudo porque a tradução da realidade, a sua transformação em linguagem, está submetida ao conhecimento que o operador, ou tradutor, carrega consigo, e que se refletirá na descrição que ele fará do evento objeto de estudo. Como cada pessoa possui em grau variado um caldo cultural que lhe forma a consciência, também terá uma expressão linguística diversa para exprimir a realidade que enxerga. Não existe uma interpretação certa ou errada, mas sim interpretação válida ou inválida, segundo as normas do direito positivo. E, dentre as interpretações válidas, aquela em que seu formulador consegue incutir nos demais sua força de convicção, de modo a que os demais também interpretem o evento segundo aquela visão.

Nenhum comentário: