terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Livro: Desonra, de J.M.Coetzee


Livro bem escrito e de frases curtas. A história flui bem.

David Lurie, o personagem central, é uma pessoa de meia-idade que vive no meio urbano inicialmente. Mas por conta de suas ações reprováveis socialmente, acaba por perder a comodidade de sua cátedra numa universidade da Cidade do Cabo.

Vai então ao encontro de sua filha que mora no campo, levando uma vida frugal. As situações, a perplexidade, a análise filosófica dos momentos da vida são passagens constantes no livro.

Os personagens são muito bem construídos e instigam o leitor a desvendar o seu comportamento do ponto de vista moral.

Enfim, o livro trata de questões existenciais, do envelhecimento, do desejo, da atração, do espelhamento campo x cidade, de valores que são respeitados no ambiente urbano e dos valores que são vigentes no meio rural sul-africano.

O tratamento dispensado aos animais permeia todo o enredo, servindo como mais um ponto de reflexão sobre o comportamento dos seres humanos na sua relação com os animais.

sábado, 3 de maio de 2014

Ideias para uma cidade


Pensando nos recursos do Governo Federal liberados para Ribeirão Preto, através do PAC II, pensei em algumas ideias que, em conjunto com os projetos de mobilidade urbana para os quais os recursos são destinados, poderiam tornar a cidade mais humana, atraente, habitável, solidária, desenvolvida e atenta aos problemas dos munícipes.
Podem parecer óbvias, mas é sempre bom repetir o que é óbvio, pois acabamos muitas vezes nos esquecendo de fazer o óbvio pra tentar o mais difícil.

1) Placas de identificação das vias: instalar em cada esquina da cidade postes de sinalização com placa padronizada contendo os nomes das vias que se cruzam; é desejável que as placas contenham informações como nome do logradouro, faixa de numeração da quadra e, se possível, linhas de ônibus que fazem o trajeto. Pode-se pensar no custeamento do projeto através de exploração de espaço nas placas para publicidade de empresas interessadas. O espaço publicitário seria regulado, padronizado e obedeceria a critérios estipulados pela Prefeitura Municipal, que poderia, por exemplo, não aceitar propaganda de bebidas alcoólicas, cigarros etc.

2) Lixeiras: instalar lixeiras nas calçadas mais movimentadas da cidade, sobretudo no centro da cidade, para que a população disponha de local onde descartar o lixo eventual, evitando-se o acúmulo de sujeira nas ruas. Não só instalar lixeiras é importante, como também mantê-las sempre em bom estado de conservação. A iniciativa poderia ser progressivamente estendida para todos os bairros da cidade. Da mesma forma que as placas, também pode-se pensar no custeamento das lixeiras explorando espaço publicitário nas mesmas. Outras ações podem ser pensadas como, por exemplo, instituir multa pra quem joga lixo na rua ou calçada.

3) Calçadas: manter as calçadas, os passeios públicos, sempre em bom estado de conservação, de modo que as pessoas possam caminhar sem o risco de obstáculos, buracos ou desníveis no trajeto. Sempre que possível, manter o calçamento no mesmo padrão (tipo de pedra, tamanho da calçada etc), de forma a criar uma identidade para a cidade. Todos os cruzamentos de calçadas deveriam dispor de acesso para as pessoas com necessidades especiais, demarcadas com destaque (cor diferente, sinalização). Sendo de cada morador a manutenção de sua calçada, fiscalizar para que isso aconteça.

4) Praças públicas: manter as praças públicas limpas, ajardinadas, com espaço para o inter-relacionamento social (bancos, coretos, trilhas para caminhada onde possível, aparelhos de ginástica, rede wifi se possível etc).

5) Terrenos baldios: fiscalizar fortemente a limpeza dos terrenos baldios, cobrando tributo progressivo pela inutilização da área no tempo (quanto mais tempo o terreno permanecer sem destinação maior será o IPTU, por exemplo). Elaborar legislação para exigir do proprietário da área que a mure, limpe, e estabeleça a infra-estrutura necessária do imóvel (ligações de energia, água, telefone etc).

6) Poluição sonora: cuidar para que haja norma municipal que não permita a utilização de moradias em áreas residenciais com destinação para eventos musicais e shows, mesmo que eventuais. É muito comum, por exemplo, a existência de “repúblicas” em áreas residenciais, próximas de escolas, onde a perturbação mostra-se exagerada e além do tolerável.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Reforma Tributária e Guerra Fiscal

O grande entrave para uma reforma tributária no Brasil é a tributação sobre consumo.
Do jeito que foi feita a repartição de competências na Constituição, dividiu-se o imposto sobre consumo entre três esferas de governo (IPI, COFINS, PIS/PASEP para a União, ICMS para os Estados e ISS para os Municípios).
Diante desse quadro, imagine a quantidade de alíquotas, benefícios e normas editadas pelos entes federativos.
Esta situação impõe um alto custo de manutenção das administrações tributárias e um alto custo para as empresas.
A desejável neutralidade do tributo não pode ser alcançada em um cenário assim. Tal situação distorce a alocação ótima de recursos da economia, que se traduz no custo Brasil.
Para a reforma tributária avançar, é necessário resolver a questão da tributação do consumo e enfrentar as questões políticas e jurídicas que o tema carrega. Há que se pensar em novo formato para a Federação, pelo menos no que diz respeito à sua sustentabilidade financeira.
O Prof. Richard Bird, da Universidade de Toronto, consultor do Banco Mundial e ex-chefe do Departamento Fiscal do FMI, defende o equilíbrio orçamentário com predominância das receitas próprias dos estados em vez de mecanismos de transferências intergovernamentais. O que vemos no Brasil hoje é que poucas unidades da federação conseguem sobreviver com receitas próprias. São totalmente dependentes dos repasses intergovernamentais, cujos FPE e FPM são os exemplos mais bem acabados.
Para o Prof. Bird, a melhor fonte de receita para os estados seria um imposto sobre valor adicionado, administrado num sistema dual: uma alíquota federal e outra estadual, baseado em tributação sobre o destino.
Para Bird, é fundamental que exista coordenação ente as administrações fazendárias federal e estaduais para o sucesso do sistema.
Já o Prof. Ricardo Varsano, em seu artigo "A guerra fiscal do ICMS: quem ganha e quem perde", defende as seguintes ideias:

ü  Impostos influem no comportamento dos agentes econômicos por afetarem a alocação de recursos.
ü  “Conceitualmente, a tributação justifica-se na medida em que o benefício gerado pelo uso público de recursos da sociedade, possibilitado pela arrecadação, seja maior que seu custo de oportunidade, medido pelo benefício social do melhor uso privado dos recursos, acrescido do custo criado pela tributação.”
ü  O incentivo fiscal, portanto, seria a eliminação marginal do tributo em função do surgimento de uma oportunidade de uso privado dos recursos, cujos benefícios superem o uso público a que se destinavam.
ü  São três as condições para concessão de incentivos fiscais:
o   Sem o incentivo não seria aproveitada a oportunidade de uso privado dos recursos;
o   O uso privado dos recursos represente um novo investimento no Estado;
o   Os benefícios gerados pelo uso privado dos recursos sejam apropriados pelos residentes no Estado em proporção superior aos benefícios que o anterior uso público dos recursos geraria.
ü  Do ponto de vista nacional, são raros os empreendimentos que atendem às três condições, isto é, que sejam merecedores de incentivos fiscais.
ü  Por exemplo, não faz sentido dar incentivo, via ICMS, para empreendimentos que visem exportar seus produtos, posto que o imposto não incide sobre a exportação.
ü  Do ponto de vista nacional, estimular a relocalização de empreendimentos também é desperdício de recursos, posto que a ineficiência alocativa provocada por uma localização que não é a melhor acabará por consumir os recursos públicos renunciados.
üConceder redução de ICMS para empreendimentos multinacionais é entregar a não-residentes recursos antes utilizados no bem-estar da população local. Somente na hipótese de a empresa não se instalar no país haveria a justificativa da concessão do incentivo.
ü  “Primeiro, os vencedores das guerras fiscais são, em geral, os estados de maior capacidade financeira, que vêm a ser os mais desenvolvidos, com maiores mercados e melhor infra-estrutura. Segundo, ao renunciar à arrecadação, o estado está abrindo mão ou da provisão de serviços (educação, saúde, a própria infraestrutura etc.) que são insumos do processo produtivo, ou do equilíbrio fiscal, gerando instabilidade macroeconômica”.
ü  O governador defende os interesses do estado, mesmo que entre em conflito com os interesses do país, sob o argumento da autonomia dos entes federados.
ü  A instalação de uma empresa no estado, mesmo que exportadora, por exemplo, cria empregos e, portanto, gera renda adicional para a unidade. Deste ponto de vista, é bom negócio para o estado.
ü  Na sistemática atual de tributação das operações interestaduais, é vantajoso para um estado conceder incentivo para uma empresa produtora de produtos exportáveis, desde que a empresa exportadora situe-se em outro estado. A exportação não gera receita para o estado da empresa exportadora e ainda tem que arcar com o ônus do crédito.
ü  Também nos empreendimentos voltados para o mercado interno, a tributação interestadual estimula a concessão de benefícios, a par da ineficiência econômica que pode gerar.  A empresa situada em um estado que lhe conceda benefício fiscal terá vantagem competitiva ante os concorrentes que se instalem no estado que concentre os consumidores dos produtos. O resultado disso, é a pressão que os governos estaduais são submetidos para que concedam igual tratamento às empresas que estão sendo prejudicadas. Resultado: a sangria dos recursos públicos do estado aumenta.
ü  Os anos de vigência e inobservância da LC nº 24/75 mostram que os estímulos econômicos prevalecem sobre as disposições legais que coíbem a guerra fiscal.
ü  É preciso minimizar o estímulo à participação na guerra fiscal. A tributação do ICMS no comércio interestadual é exemplo de ação no sentido errado.
ü  Na ótica de cada estado, o ICMS é um imposto híbrido: parte sobre o consumo e parte sobre a produção. O imposto sobre a produção é arma muito mais poderosa na guerra fiscal que o imposto sobre o consumo.
ü  Para se transformar o ICMS em imposto sobre o consumo sob a ótica estadual, e assim minimizar os efeitos de uma guerra fiscal, basta adotar o princípio da tributação no destino.
ü  Com o princípio do destino, todos os produtos destinados a consumo em um estado, sejam eles produzidos no próprio estado, em outro estado ou mesmo vindo do exterior, gerariam arrecadação exclusivamente para aquele estado. Por outro lado, bens produzidos no estado, mas destinados a outros estados e ao exterior, não seriam por ele tributados.
ü  Assim, a concessão de benefícios fiscais para atrair empreendimentos somente seria atraente quando a empresa beneficiada dirigisse suas vendas para o mercado interno do estado concedente.
ü  Sugere-se uma implantação gradual da tributação no destino, reduzindo-se paulatinamente a alíquota interestadual até zero para que os estados exportadores líquidos (como São Paulo, por exemplo) não sofram um impacto muito grande em sua arrecadação total.
ü  Outra consequência da tributação no destino será a reestruturação da administração fazendária, sobretudo nos estados menos desenvolvidos, uma vez que a tributação estará diluída no expressivo número de consumidores.
ü  Uma dificuldade da tributação no destino é o estímulo à sonegação fiscal. A diferença entre as alíquotas interna e interestadual estimula o mau contribuinte a simular operações interestaduais, embora entregue o produto no próprio estado, criando uma cadeia de evasão fiscal. Uma possível solução seria substituir o IPI e o ICMS por um único imposto, com características do ICMS, partilhado entre União e Estados.

Um ponto crucial nessa discussão é que a concessão de benefícios fiscais de um estado não pode se dar em prejuízo do outro.
Que Mato Grosso, Espírito Santo, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outro estado tenha sua política de incentivos para atrair investimentos é uma coisa. Fazê-lo e mandar a conta para o estado vizinho é buscar uma guerra mesmo.
São Paulo não deve e não pode pagar a conta dos benefícios concedidos pelos estados vizinhos. Quando digo São Paulo, leia-se todos nós cidadãos paulistas. O custo do benefício concedido lá fora está repercutindo na arrecadação paulista.
O destaque na nota fiscal deveria corresponder exatamente ao que foi cobrado do contribuinte na origem. Não é possível que se destaque 12% de ICMS num documento fiscal (que vai virar crédito para o comprador), quando na realidade o vendedor só pagou 2%, por exemplo. Se o vendedor é de outro estado e o comprador de São Paulo, o estado de São Paulo suportará 10% de crédito que não foi cobrado. 10% a menos de recursos para São Paulo! Não está certo isso!
É preciso que os benefícios e incentivos fiscais não extrapolem as fronteiras de cada estado. Se extrapolar, o mínimo que se espera é que seja ouvido o outro estado envolvido.
Lei existe, órgão para deliberar existe, o que não existe é pudor para evitar a concessão de benefícios à margem da ordem legal.
Eu penso que o ordenamento jurídico não tem função de trazer de volta o respeito às instituições. Ou o país é maduro suficiente pra respeitar a ordem constituída, ou não é e vira um caos. Caos, neste caso, tributário.
O ICMS é um imposto muito complexo. Isso já deriva da Lei Kandir. Ela precisa ser reformada, no meu ponto de vista, para simplificar o tributo.
O fato, o problema que temos vivenciado ao longo de todo o tempo que o ICMS foi instituído desde a CF de 88, é que as 27 legislações do imposto não foram capazes de impedir a guerra fiscal. Ao contrário, exacerbou-a.
Não tenho convicção de que um IVA nacional resolveria o problema, mas, diante do caos atual, é uma alternativa. Quais outras poderiam ser listadas? Qualquer uma terá prós e contras. É claro que não podemos fazer do país e dos estados um laboratório. Mas, continuar insistindo no atual modelo não me parece a alternativa mais inteligente.
Agora, um aspecto é fundamental para qualquer solução que for dada ao tema: o respeito às instituições e ao Estado Democrático de Direito.
Se continuarmos com o discurso de que tal lei "pegou", tal lei "não pegou", viveremos eternamente na insegurança jurídica, a mercê das ilegalidades e arbitrariedades que assistimos todos os dias.
Essa discussão da guerra fiscal passa pela ideia de federação que queremos. Entes independentes administrativa, financeira e politicamente? Ou uma federação em que os entes dependam financeiramente de outro? Qual federação vige no Brasil hoje? Os municípios são independentes? Municípios devem ser entes da federação?
Veja que tais questões são de cunho constitucional.  Dependendo da resposta, implica em nova constituição, com as consequências que isso provoca.
Então, acredito, a alteração do ICMS tem que ser tal a ponto de equilibrar essa mexida na ideia de federação, com a minimização da guerra fiscal, se não quisermos uma ruptura constitucional.
Tudo dependerá, portanto, do tamanho da alteração que os estados estão dispostos a fazer para findar a guerra fiscal.
Só unificar alíquota interestadual, por exemplo, será muito pouco para alterar o atual quadro de guerra fiscal.
Eu acho que a federação brasileira está numa encruzilhada com esse cipoal de competências tributárias. E o resultado disso é o manicômio tributário em que vivemos.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Divulgar salário cria falsa sensação de controle

Reproduzo aqui artigo de Bruno Hazan Carneiro, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, publicado na Revista Consultor Jurídico de 29/06/2012, em que alinhava muito precisamente a falsa sensação de controle com a divulgação dos salários dos servidores públicos, fruto da lei de acesso à informação.

Uso midiático da lei

Divulgar salário cria falsa sensação de controle

Não são poucas as manchetes divulgando a Lei Federal 12.527, de 18 de novembro de 2011, também chamada de Lei de Acesso à Informação, notando-se grande ênfase da mídia no ponto referente à divulgação de listagem nominal de servidores públicos e seus respectivos vencimentos.
Antes mesmo de buscar soluções para as dúvidas trazidas pela lei — se possui natureza federal ou nacional; se deverá ser editada lei local para regular a matéria ou bastará edição de decretos regulamentares (artigo 45); se houve extrapolação do Poder Regulamentar do chefe do Executivo Federal, especificamente no que concerne ao artigo 7º, parágrafo 3º, VI, do Decreto Federal 7.724/12, dispositivo que prevê a divulgação da listagem nominal, entendemos imprescindível uma breve análise da relação existente entre os verdadeiros objetivos e fins úteis da lei e os respectivos meios postos à disposição para concretizá-los.
Ora, é certo que a lei foi editada, diga-se, em bom tempo, com o objetivo de assegurar e materializar o direito fundamental de acesso à informação para todos (artigo 3º), direito este já previsto pela Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, permitir maior fiscalização e controle sobre a gestão da coisa pública (aí incluídos os gastos com pessoal). Do mesmo modo certo também é que se preocupou com a forma da divulgação de tais informações, a fim de preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais (artigos 6º, III, 4º IV e 31), igualmente em harmonia com o texto constitucional.
Nessa ordem de ideias, em relação ao ponto específico que se analisa — divulgação de listagem nominal de servidores públicos com respectiva remuneração para toda a população, pergunta-se:
(i) tornar pública essa informação, embora assegure o livre acesso à informação (fim imediato da Lei), gerará maior fiscalização e controle do serviço público, permitindo um efetivo controle popular capaz, por exemplo, de reduzir os gastos públicos com despesas de pessoal (objetivos mediatos da lei)?
(ii) ou trata-se de medida que não atende aos fins desejados pela lei, tomando o aspecto de placebo ofertado à sociedade e à mídia em geral, que poderá saciar sua curiosidade acerca de quanto ganha determinado servidor público, nada trazendo de efetivo, além disso?
(iii) ainda pior, a publicação da referida listagem — além de não atingir os fins pretendidos — não servirá, encoberta pela justificativa do "amplo acesso a informação", para desnudar o servidor público, violando sua intimidade e privacidade, expondo-o e a sua família a constrangimentos e riscos desnecessários?
Para responder a tais indagações, temos inicialmente que fixar uma premissa principal, considerando os fins imediatos e mediatos da lei (recapitula-se: o amplo acesso a informação como forma de efetivar um maior controle da coisa pública). A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito e já existem instituições e órgãos, previstos na própria Constituição Federal de 1988 e em legislação infraconstitucional, com a incumbência de promover fiscalização e controle dos gastos do funcionalismo público. Como por exemplo, citam-se os Tribunais de Contas, as Controladorias, as Corregedorias e, em casos de algumas categorias, ainda o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e até mesmo o Congresso Nacional.
Para tais órgãos, no que diz respeito ao assunto ora tratado, pouco, ou melhor, nada inova. Isto porque, vale a pena ressaltar, estes entes sempre possuíram amplo acesso a tais informações. Assim, de modo realístico, chega-se a uma primeira conclusão: para aqueles que receberam a missão de fiscalizar e controlar, quase nada muda.
Cria-se, portanto, um dilema inexorável: ou confiamos em tais instituições — algo fundamental em um Estado Democrático de Direito ou manifestamos nosso descontentamento e inconformismo com as mesmas, com os meios que nos são postos a disposição, inclusive, por meio das urnas, apoiando pelo voto popular, por exemplo, quem se proponha a alterar a atual forma legalmente prevista desse tipo de fiscalização e controle.
E se nada mudou para estes órgãos, o que a norma federal traz de diferente nesse particular? Simples, permite o acesso a tais informações, que antes eram restritas aos mencionados órgãos, a qualquer um do povo. E, quando dizemos qualquer um do povo, inclua-se aí, juntamente com a parcela da sociedade civil organizada, as ONGs, o cidadão comum, também os malfeitores!
Ora, cremos que é muito pouco provável, sem qualquer tipo de juízo de valor ou desmerecimento, que o homem comum, o homem médio, tenha como fazer uso adequado dessas informações, dada a alta complexidade e diversidade que envolve a matéria de pessoal nos três níveis de nossa Federação e seus respectivos poderes.
Se nem mesmo os 11 (onze) ministros do Supremo Tribunal Federal, considerados como alguns dos maiores juristas do país, chegam a um senso comum acerca de determinadas verbas vencimentais, do seu caráter indenizatório (ou não), de sua exclusão ou inclusão no limite do teto constitucional, quem dirá o homem comum, que na maior parte dos casos sequer formação jurídica possui. Chegamos, portanto, a uma segunda conclusão: a inovação trazida pela Lei e o Decreto, qual seja, a divulgação indiscriminada de tais informações a qualquer um do povo, da forma como vem sendo proposta, não se presta a um fim útil, pois não permitirá uma maior fiscalização ou controle dos gastos públicos de pessoal.
Resta-nos, então, avaliar as demais opções acima aventadas. A Lei de Acesso e o respectivo Decreto Federal, ao menos no ponto em que pretendem tratar a questão da divulgação dos salários dos servidores, destinam-se, ao nosso juízo, tão somente a criar uma falsa sensação de fiscalização e controle na sociedade. Aliás, poderão servir, no máximo, para satisfazer a curiosidade alheia de quanto ganha um parente, um vizinho, um conhecido, um amigo íntimo ou até mesmo um inimigo capital! Até aí, talvez apenas um constrangimento, um aborrecimento, mas que certamente não se encontra entre os objetivos da norma.
Desviamo-nos então, do propósito da lei. Afinal, permitir que todos bisbilhotem a vida íntima e privada dos servidores públicos já não é de se admitir: a uma, pois não atinge os fins imediatos ou mediatos da norma e, a duas, pois nada mais íntimo, nada mais privado e pessoal do que o seu salário. Nem mesmo com amigos mais próximos ou familiares o assunto é tratado com naturalidade, não sendo comum às pessoas explanarem sua renda aos quatro cantos. Daí o caráter midiático ao qual nos referimos acima.
O ponto transcende o senso de discrição e modéstia. A publicação do contracheque pode vulnerar situações existenciais. Exemplifica-se: não podemos desconsiderar a exposição do servidor que possui descontos em folha de pagamento oriundos de empréstimos consignados, de despesas de saúde ou até mesmo descontos de pensão alimentícia.
O dever de proteção a essas situações não é inédito no ordenamento jurídico: se o processo que cuida de um divórcio, de uma separação litigiosa com guarda de menores em que uma parte pede alimentos pode tramitar em segredo de justiça, como admitir então que a decisão de tal processo — o quanto será descontado em folha, seja tornado público?
Contudo, a situação piora drasticamente quando analisamos a última das hipóteses. Se levarmos em consideração que em uma nação como a nossa, com amplo acesso à internet — onde é público e notório que até mesmo bandidos presos alimentam seus perfis em redes sociais de dentro de penitenciárias —, a divulgação das informações ganha um viés temerário!
Imaginem o que não poderão fazer sequestradores, estelionatários e malfeitores em geral de posse de tais dados? Ora, a resposta é evidente! Ficaremos reféns destas pessoas, que já saberão quanto ganhamos e onde trabalhamos e, com uma rápida pesquisa na internet, poderão facilmente descobrir nossos endereços residenciais.
Infelizmente, muito embora os defensores da publicação apregoem que a vinculação ao teto remuneratório serviria para afastar o interesse no planejamento de atos criminosos, não se pode olvidar que vivemos numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, na qual, infelizmente, crimes capitais são perpetrados pela possibilidade de ganhos de poucos reais.
Dessa forma, a publicação mostra-se temerária e inaceitável! Coloca em risco a intimidade, o sigilo e, principalmente, a segurança dos servidores públicos e de seus familiares, bem como suas liberdades e garantias individuais, algo que como já ressaltado a norma visa preservar. Enfim, um total contrassenso.
E nesse ponto surge uma questão até agora pouco explorada. A responsabilização do próprio ente federativo (União, estados e municípios) ou de suas entidades por eventuais danos que seus servidores venham a sofrer. Será que aqueles que pretendem regulamentar a lei já refletiram sobre isso? Os altíssimos custos de indenizações por sequestros e outros males sofridos por servidores vítimas de marginais?
Sim, pois o artigo 34 da lei prevê que "Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais, cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa..."
Enfim, não defendemos aqui a ausência total e absoluta de informações sobre os gastos com o funcionalismo público, entretanto contrapomo-nos à maneira como isso está sendo feito, repita-se, através da listagem nominal de servidores com a respectiva remuneração por, como demonstrado, não atingir fim útil algum e expor desnecessariamente o servidor e seus familiares. O acesso deve sim ser franqueado, mas harmonizando e ponderando todos os interesses e princípios envolvidos.
Cogita-se também da divulgação apenas da matrícula (ou CPF ou RG), mas tal medida não é em nosso entender satisfatória, uma vez que a matrícula, assim como o CPF ou o RG, é um numero único, individualizado e que pode facilmente ser correlacionado ao nome do servidor e acarretando todos os problemas já descritos.
Por isso, avaliamos que a divulgação da remuneração de cada carreira, classe, categoria, posto, graduação, função e emprego, com todas as gratificações, auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, com os respectivos quantitativos, ou, até mesmo, a lista dos vencimentos sem a correlação ao nome do servidor ou sua matrícula, CPF ou RG, se presta a dar uma real noção à sociedade dos gastos com o funcionalismo público, atingindo, destarte, o real objetivo da norma, disposto em seu artigo 3º, caput, que é o de assegurar o direito fundamental de acesso à informação constitucionalmente previsto sem, contudo, colocar em risco a intimidade, a privacidade e a segurança do servidor e de sua família (artigos 6 º, III, 4 º IV e 31).
Tal solução compatibiliza os interesses de todos os envolvidos, bem como os princípios tutelados pela norma, realizando o seu fim útil, não se prestando a tornar a mesma mero instrumento capaz de saciar a curiosidade alheia e, consequentemente, afastando de si o caráter apelativo que a mídia tem lhe emprestado, bem como evitando os constrangimentos e riscos à intimidade, à privacidade, ao sigilo e à segurança do servidor e de seus familiares. Por fim, é sempre bom rememorar que a Lei em momento algum obriga seja divulgada a listagem nominal, tendo tal obrigação sido trazida pelo Decreto Federal que, salvo melhor juízo, extrapolou de seu poder regulamentar e não concretizou os fins imediatos ou mediatos da norma, pelo contrário.
Bruno Hazan Carneiro é procurador do estado do Rio de Janeiro, diretor-executivo da Aperj (Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro) e secretário-geral da Anape (Associação Nacional dos Procuradores de Estado).
Revista Consultor Jurídico, 29 de junho de 2012

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Multa moratória e denúncia espontânea

A multa moratória é uma sanção de natureza indenizatória e visa a ressarcir o prejuízo suportado pelo credor, tendo em vista a demora do devedor em adimplir sua dívida.

No caso do ICMS paulista, a multa moratória está disciplinada no art. 87 da Lei nº 6.374/89. Se o imposto não for recolhido no prazo estabelecido na legislação, o débito fica sujeito à multa moratória, calculada sobre o valor do imposto ou da parcela, conforme a seguir:

I - 2%, até o 30º dia contado da data em que deveria ter sido feito o recolhimento;

II - 5%, do 31º ao 60º dia contado da data em que deveria ter sido feito o recolhimento;

III - 10%, a partir do 60º dia contado da data em que deveria ter sido feito o recolhimento;

IV - 20%, a partir da data em que tiver sido inscrito na Dívida Ativa.

Nos casos de pedidos de parcelamento, a multa moratória será calculada até a data do protocolo do pedido.

Os demais débitos fiscais relativos ao imposto, enquanto não exigíveis por meio de auto de infração, ficam sujeitos à multa moratória.

Se o contribuinte procurar a repartição fiscal, antes de iniciado quaisquer procedimentos do fisco, para sanar irregularidade relacionada com o cumprimento de obrigação tributária, fica a salvo das penalidades previstas no art. 85 da Lei nº 6.374/89.

Considera-se iniciado o procedimento fiscal, com a intimação, notificação ou lavratura de termo de início de fiscalização ou de auto de infração. Também é considerado iniciado o procedimento fiscal com a lavratura do termo de apreensão de mercadoria, bem, livro ou documento, bem como a notificação para sua apresentação.

A Secretaria da Fazenda poderá emitir comunicado destinado ao contribuinte, apontando divergências ou inconsistências apresentadas entre as informações enviadas pelo contribuinte e as coletadas de terceiros. Nesta situação, o contribuinte estará a salvo de penalidades se sanar as irregularidades apontadas na comunicação dentro do prazo estabelecido.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Dívida tributária e sonegação fiscal

Em recente artigo publicado no site Congresso em Foco, o articulista Maurício Silva Leite discorre sobre dívida tributária e sonegação fiscal.
Concordo com seu ponto de vista de que nem toda dívida tributária (AIIM) configura sonegação. Há erros, interpretações divergentes da legislação, desconhecimento etc., por parte do contribuinte, que enseja o auto de infração. Pra configurar crime, tem que haver a conduta dolosa, a intenção de fraudar.
Em questões polêmicas, por exemplo, em que a conduta infracional pode, em tese, estar baseada na interpretação de uma lei flagrantemente inconstitucional, não me parece que seja o caso de se acusar a conduta de crime, porque a questão é passível de discussão na justiça. A lei pode estar contrariando a Constituição, mas, enquanto não for declarada inconstitucional, produzirá efeitos. Então, no meu entender, agir segundo seu regramento não tipifica crime.
Crime é a conduta antijurídica, tipificada na lei penal. Para dizer que foi crime, todos os elementos da tipificação da conduta têm que estar presentes. Ausente algum requisito, a dúvida milita a favor da inocência.
Outro ponto relevante que gostaria de destacar é o dispositivo que extingue a conduta criminosa se o autuado pagar o auto de infração. Esse conceito está equivocado. Pagamento não poderia ter o condão de eliminar o crime.
Crime é conduta antijurídica, repito. Se vivemos sob a égide das leis, para todo crime haverá uma sanção. O pagamento do tributo é a conduta esperada. Pagando, o contribuinte não fez mais do que se esperava dele. Mas, se há crime, antes de pagar, delinquiu. E se cometeu crime, deveria arcar com as consequências impostas pelo Direito, que, em última análise, regula as condutas intersubjetivas. É assim, em tese, pra todos que vivem em sociedade.
Imagine se depois que o bandido cometer um latrocínio (roubo seguido de morte), por exemplo, ele resolvesse compensar o prejuízo causado, pagando pelos bens materiais que roubou acrescido de uma indenização pela morte da pessoa. Então, ele estaria livre da condenação pelo crime? Claro que não! Ele afrontou valores que o Direito preserva e defende: a vida, principalmente. Não há pagamento que resgate o valor atacado.
Mas como tudo em Direito, trata-se de questão discutível, posto que a sociedade e seus valores são mutantes. Não existe opinião definitiva, certa ou errada.
Viver em sociedade importa em tudo isso. Dizer o direito, o que é justo, é apenas uma pequena parte do processo todo. Tudo começa com a eleição dos legisladores (políticos nas três esferas: municipal, estadual e federal). São esses agentes que criarão as normas, digamos estruturais. No Brasil, o Executivo é, talvez, até mais importante do que o Legislativo, pois além de gerir, edita um sem número de regras (Decretos, Portarias, Instruções Normativas, Resoluções, Circulares, Atos Normativos etc.) que afetam a vida de todos.
Ao Judiciário cabe fazer a "leitura" de tudo isso que é produzido em termos de legislação. Portanto, além da infinidade de normas, algumas até conflitantes entre si, ainda passa pela interpretação que o operador do direito (juiz, agente administrativo, advogado, promotor público, procurador, defensor, desembargador etc.) imprime à regra.
Então, existe decisão de todo tipo, afetando tal e qual interesse. Mas, isso é a vida! Cada um defende o que entende ser justo de acordo com suas convicções. Sem perder de vista que há, e isso é demasiadamente grave no Brasil, os corruptos, safados, aproveitadores, criminosos de toda ordem que usam a estrutura legislativa para perpetrar seus crimes contra a sociedade.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Direito e a tradução da realidade

A incidência da norma jurídica, efetivada pelos operadores do direito, consiste na tradução do fato social em fato jurídico, segundo a técnica própria da linguagem do direito positivo.
O fato social já é uma tradução do evento do mundo real, da realidade, em linguagem própria do tradutor, fruto da sua vivência cultural numa língua natural que tem suas próprias estruturas de representação da realidade.
Portanto, o fato jurídico, aquele que interessa ao ordenamento, é consequência de duas traduções linguísticas. A realidade em si, fugaz e múltipla, somente em alguns aspectos pode ser captada ou traduzida pela linguagem natural que a representa. O fato social, portanto, já traz em si as restrições da primeira tradução, da primeira versão representada nos signos da linguagem.
Cabe aos operadores do direito verter o fato social, realidade descrita em linguagem social, para o mundo jurídico, fazendo a segunda tradução, do fato social para fato jurídico, que é a representação do evento do mundo real na linguagem jurídica. Linguagem jurídica que é essencialmente prescritiva, onde são estabelecidas as relações jurídicas, interligando os sujeitos em suas interações intersubjetivas.
O próprio direito positivo traz em sua constituição os meios e formas com os quais os operadores do direito poderão se valer para constituir o fato jurídico. Trata-se da linguagem das provas, que determinarão o que é o fato jurídico para o mundo do direito. O grande desafio do jurista é saber distinguir o que é evento, fato social e fato jurídico. As relações entre tais categorias estão estabelecidas nos processos de tradução da realidade, do mundo bruto em si (evento), traduzido em linguagem na consciência de cada um (fato social), e que poderá entrar no mundo do dever-ser, do direito, conforme sua adequação à linguagem probatória que o transmude em fato jurídico.
A conclusão a que chegamos ao estudar este ponto é de que a linguagem firma-se como ponto fundamental para o entendimento da realidade. A linguagem cria a realidade para a nossa consciência. Sem podermos nos expressar numa língua sobre os objetos e dados brutos com os quais interagimos no mundo, não conseguiríamos transmitir nosso conhecimento a outra pessoa, não poderíamos nos comunicar, não adquiriríamos nosso próprio conhecimento do mundo.
Além disso, existem várias camadas de linguagem para expressar um evento, ou se formos mais precisos e acurados, existe uma linguagem para cada tradução que fizermos do evento. Tal pode ser entendido a partir da língua natural do meio em que vivemos, como também pode ser traduzido, a partir dessa primeira tradução, para outra espécie de linguagem, científica por exemplo, onde se conformará segundo as regras linguísticas estabelecidas neste novo padrão. Assim ocorre com o evento do mundo real, que traduzimos para nossa língua materna, em nossos conscientes, que forma o fato social visto sob o ângulo cultural em que fomos educados. Tal fato social poderá ingressar no mundo científico do direito, por exemplo, obedecendo aos cânones da linguagem jurídica posta pelo direito positivo. E aí teremos o fato jurídico, vertido a partir do fato social.
Perceba que nesses processos de traduções, de passagem de uma linguagem para outra, o evento bruto do mundo real, fugaz e instantâneo, já terá perdido várias de suas características intrínsecas e será moldado a partir do ponto de vista do operador que efetuar as traduções. Daí que, no direito, um mesmo evento poderá suscitar diversas traduções, vale dizer, várias interpretações. Tudo porque a tradução da realidade, a sua transformação em linguagem, está submetida ao conhecimento que o operador, ou tradutor, carrega consigo, e que se refletirá na descrição que ele fará do evento objeto de estudo. Como cada pessoa possui em grau variado um caldo cultural que lhe forma a consciência, também terá uma expressão linguística diversa para exprimir a realidade que enxerga. Não existe uma interpretação certa ou errada, mas sim interpretação válida ou inválida, segundo as normas do direito positivo. E, dentre as interpretações válidas, aquela em que seu formulador consegue incutir nos demais sua força de convicção, de modo a que os demais também interpretem o evento segundo aquela visão.